"A formação dos professores brasileiros é um tema de extrema relevância que merece toda nossa atenção. Faço parte do grupo de educadores que concluiu o ensino superior em instituições privadas. Juntos, representamos uma parcela profissional com características próprias. A situação socioeconômica que o país enfrenta ao longo da história reflete-se diretamente na organização e no desenvolvimento do sistema educacional.
Um exemplo disso são as faculdades privadas, que recebem predominantemente estudantes de baixa renda provenientes de instituições públicas de ensino básico. Esses universitários, ao ingressarem no mercado de trabalho como profissionais da educação, se deparam com salários consideravelmente mais baixos em comparação a outras profissões que exigem o mesmo nível de formação acadêmica. Em suma, o professor é o trabalhador mais desvalorizado em nosso país. Essa situação se agrava ainda mais quando comparamos a carreira do profissional da educação no Brasil com a de outros países (Fonte: OCDE, https://oglobo.globo.com/sociedade/professores-brasileiros-tem-os-piores-salarios-afirma-ocde-em-levantamento-feito-em-48-paises-23752804).
Uma parte desse problema reside no processo de formação desses profissionais. Historicamente, os membros da classe trabalhadora foram excluídos devido a um modelo educacional que privilegiava os interesses da classe dominante. No passado, essa exclusão se manifestava principalmente nos vestibulares, que representavam obstáculos quase intransponíveis, valorizando habilidades e competências desenvolvidas por cidadãos mais abastados, que possuíam certas condições e tradições provenientes do poder aquisitivo.
O estudante de baixa renda que possuía algum capital cultural e nutria o desejo de ingressar em uma universidade pública assumia uma posição heroica, mítica e vanguardista. Aqueles poucos que conseguiam superar e dominar a lógica dos vestibulares se orgulhavam da possibilidade de ascender a espaços econômicos historicamente reservados aos filhos da classe dominante. No entanto, é fundamental questionar a crença de que a individualidade e o mérito pessoal são os únicos caminhos para alcançar a dignidade. Essa crença merece ser investigada. O que é importante destacar é o sentimento de "incapacidade" imposto a todos aqueles que não atingiam os níveis culturais e materiais exigidos pela classe dominante para ingresso na universidade pública.
Para o trabalhador que se dedica a uma jornada extensa, não é possível se dedicar tranquilamente à leitura de obras como "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Por essa razão, as questões dos vestibulares exigiam conhecimentos predominantemente ensinados em cursinhos pré-vestibulares. Metaforicamente, o vestibular se tornou um grande labirinto, acessível apenas para aqueles que dominavam os códigos corretos. Desprovidos das mesmas condições materiais e culturais, como mencionado anteriormente, os membros da classe trabalhadora que se aventuravam nesse labirinto e obtinham sucesso alcançavam uma posição destacada. No entanto, a divulgação desses eventos geralmente orbitava em torno de uma interpretação elitista. A mídia apresentava essas conquistas como algo possível para todos aqueles que se dedicassem exemplarmente aos estudos, ignorando a condição socioeconômica da grande maioria dos brasileiros (Fonte: G1 Globo, http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2012/03/com-livros-achados-no-lixo-catadora-passa-em-vestibular-no-es.html).
Portanto, o vestibular era considerado um processo justo e democrático, desconsiderando a genialidade daqueles estudantes de baixa renda que conseguiam romper com a lógica dominante. Os filhos da classe trabalhadora que não encontravam a mesma oportunidade dos talentos brilhantes nem o acesso à educação e nutrição oferecidos às classes privilegiadas viam o ingresso na universidade pública como uma espécie de utopia."
Até que chegue o ingresso na Educação Superior
Ingressei no mercado de trabalho, formalmente, aos 12 anos. Em minha cidade natal existe uma instituição filantrópica que nos anos 80 e 90, recebia garotos de baixa renda com a "missão" de prepara-los para ingresso no mercado de trabalho. Os garotos e garotas assistidos eram educados a partir de uma metodologia militarizada. Nos finais de semana, todos os assistidos se apresentavam uniformizados (camisa branca, short azul, meião branco e kichute ou conga) no antigo campo rodoviário, uma área de treino que ficava em uma das regiões mais altas da cidade (Minas é conhecida pelo seus mares de morros). Os recrutas mais afortunados poderiam usar um blusão de frio padrão que era vendido pela instituição, a preços não muito acessíveis. Nenhum outro tipo de casaco poderia ser usado na falta do casaco oficial do fardamento. Nos meses de inverno, o blusão fazia toda diferença, já que todos devíamos estar em forma às 5:30h naquele campo congelante. Nossas atividades físicas se estendiam por toda manhã. Alguns desfaleciam durante os exercícios, provavelmente pela falta de energia provocada por desnutrição. Tratamento de choque para todos aqueles garotos, que na ótica de alguns instrutores, se tornariam marginais caso não fossem educados em moldes espartanos.
Os empresários da cidade valorizam muito a mão de obra responsável e dedicada dos “guardinhas”, como eram chamados os formados selecionados como mão-de-obra no mercado. Alguns empresários contratavam dezenas. Mão-de-obra subserviente, carente e acima de tudo isso, de baixíssimo custo. Essa exploração sistemática do trabalho infanto-juvenil contou com a indiferença dos órgãos de fiscalização trabalhista por muitos anos. Hoje, por bem, a instituição não funciona mais assim, o número reduzido de guardas-mirins na cidade revela essa mudança institucional.
Me formei como guarda-mirim e não tardei em conseguir meu primeiro emprego. Experimentei a existência de trabalhador-estudante muito cedo. A dedicação ao trabalho, exigida pela fundação me custou a primeira reprovação escolar. Por este agravo fui veemente repreendido, mas pude, pela graça dos gestores e da bondade de meu patrão, continuar trabalhando e estudando. A segunda reprovação não tardou.
O baixo desempenho escolar me compeliu a imaginar que talvez não fosse tão capaz quanto os outros. Me lembro de muito colegas, que como eu, também passaram a dizer que não gostavam de estudar. Essa era a estratégia que usávamos na intenção de amenizarmos a culpa pelo baixo desempenho escolar, para justificar a “bomba”.
"Conte a história de sua vila e estarás contando a história do mundo inteiro".
Sei que a exploração da mão de obra infantil não é um mal que ocorreu apenas em minha pacata cidade do interior de Minas. Desde o surgimento do proletariado, a exploração do trabalho infantil tem sido uma triste mancha na história da humanidade. Uma criança que experimenta as dificuldades do mundo do trabalho dificilmente obterá resultados desejáveis em sua trajetória escolar.
Minha juventude foi marcada por sacrifícios e dificuldades resultantes das duras condições de sobrevivência. Não fui capaz de conciliar estudos e trabalho, e por algum tempo optei pelo trabalho em detrimento da escola. Essa também era a realidade de muitos colegas que mais tarde se encontrariam comigo na faculdade. Muitos relatavam as dificuldades do trabalho infantil nas lavouras e nas atividades rurais, enquanto outros enfrentavam o labor nas atividades urbanas da cidade.
Diante de tanto sofrimento, assim como eu, muitos que proferiam a frase 'não gosto de estudar' perceberam que essa postura os conduzia a uma vida material e profissional ainda mais penosa. Portanto, após um momento de lucidez e encorajamento que surge com a maturidade, eles se dedicaram secretamente aos estudos, tornando-se trabalhadores-estudantes-professores.
Concluí o ensino médio em um curso supletivo. Foi lá que aprendi a distinguir os termos 'aluno' e 'estudante'. Trabalhava do amanhecer ao anoitecer e, nos momentos de folga, dedicava-me aos estudos e avaliações no supletivo. O autodidatismo era uma condição indispensável para garantir algum sucesso. Levei muito tempo para compreender isso. Tive a ajuda de bons educadores que incentivaram meu retorno ao caminho do conhecimento. Consegui finalizar o ensino médio, mas uma nova rota precisava ser traçada."